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25 janeiro 2019

{Senta que lá vem história!} ~ Felicidade clandestina - Clarisse Lispector ~

Bom dia, boa tarde e boa noite, seus lindos!
Como estão?

Eu estou bem felizinha! Além de ter conseguido arrumar tempo para passar por aqui com certa frequência, consegui responder todos os comentários e, de quebra, vim postar um conto bem bacana de uma autora que eu adoro!

Sentiram saudades de uma boa história? Então, senta aí pois hoje é dia de matar as saudades!



Felicidade Clandestina
Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser. ”Entendem? Valia mais do que me dar o livro: pelo tempo que eu quisesse ” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.


Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.



10 comentários:

  1. Uau!!!!Como amo contos, imagina minha alegria ao ler este que e tão diferente dos comuns! Uma linguagem mais formal,mais contemplativa.
    Eu adoro isso!
    E lendo, fui criando todo o cenário na minha mente e isso foi fantástico!
    Crianças podem ser cruéis..rs
    Quero mais da autora,muito mais.
    E oh, traga mais posts assim. Começar o dia assim, sorrindo, não tem preço!
    Beijo

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  2. A Clarisse é muito maravilhosa. Não sou muito de ler contos, mas tem uns que dá gosto! <3

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  3. A Clarice Lispector foi uma escritora maravilhosa, indo além do seu próprio tempo.
    Confesso não ser dada há muitos contos, mas alguns contos dela me agradam, provavelmente pela singularidade de sua escrita e pelas mensagens que suas histórias trazem.
    Felicidade Clandestina é um conto interessantíssimo, sendo inclusive o conto que deu nome ao livro.
    Acho que a melhor parte do conto é a realização da felicidade por meio de atos simples. Acredito que trata-se daquele famoso "a felicidade está nas coisas simples da vida".
    É um conto autobiográfico e é difícil imaginar uma Clarice criança, ávida por leitura, em uma situação como essa.
    Eu adoraria ter um pai/mãe com uma livraria, mas talvez ter tantos livros ao alcance tirasse um pouco da graça de adquirir e contemplar um novo livro.
    Eu totalmente me identifico com esse final, às vezes me pego refreando minha leitura apenas para protelar um fim iminente e prolongar minha felicidade com a leitura.

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  4. Olá!
    Que conto fantástico!
    Adorei ver a esperança e a felicidade da menina. Mas que criança cruelzinha é essa?
    Espero ver mais contos lindos como esse aqui no blog.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Ah, Clarice Lispector, amo os texto dessa autora, principalmente seus contos.
    Não conhecia o conto Felicidade Clandestina, então é daí que vem a tão fomosa frase: "Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."?
    Amei o post, bem que poderia ter mais do tipo.
    Bjos!

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  8. Que belo texto, a Clarice Linspector vai deixar saudades, era uma grande escritora!! Minha irmã coleciona alguns livros dela e ela sempre se emociona ao ler!!

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  9. Nossa, nem lembro quando foi a ultima vez que li um livro da Clarice Lispector, mas lembro que gostava muito. Não sou fã de contos, mas tem alguns que não podemos recusar. E esse conto não posso deixar de ler em alguma oportunidade.

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  10. Que conto maravilhoso. Estou encanta por ele. A última frase eu já tinha lindo por aí, mas não sabia de onde vinha. Agora sei que é mais significativa ainda. Obrigada por compartilhar conosco essas lindeza.

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